Ciclovias na periferia são tão importantes quanto saúde e escola

Ciclovias na periferia são tão importantes quanto saúde e escola

A ciclovi em São Paulo provocou discussões inflamadas sobre o papel das vias vermelhas para a passagem das bicicletas. Mas, nas regiões onde vive a população de menor poder de renda as magrelas ganham uma dimensão diferente do que para o resto da cidade. "A bicicleta traz para a periferia, em primeiro lugar, a economia", diz o cicloativista Roberson Miguel, 35, morador da Vila Bela Vista, extremo norte de São Paulo. As preocupações com o meio ambiente, que ganhou destaque nesses debates, também são secundárias ali: "Este ciclista não está preocupado em salvar o mundo, nem com a quantidade de carbono que deixa de emitir. Está preocupado em ir trabalhar, chegar e voltar. Só quer ir e vir".

Mas o "ir e vir" não é tarefa simples. Usar a bicicleta como meio de transporte em São Paulo envolve inúmeros desafios, e os 47 ciclistas mortos no trânsito da capital apenas em 2014 são prova de que a coexistência com carros, ônibus, motos e táxis ainda tem muito a melhorar. Mas se você mora há 15 (ou mais) quilômetros do centro da cidade, nas periferias da metrópole, a provação é ainda maior. Se por um lado a subprefeitura da Sé, região central, ganhou 33,8 km de ciclovias na gestão do prefeito Fernando Haddad (PT), na Casa Verde, zona norte da cidade, foi apenas 1,8 km. No Itaim Paulista, na região leste, nenhum metro de via específica para ciclistas foi construído no mandato do petista.

Pergunta. Qual a importância de ciclofaixas e ciclovias na periferia de São Paulo?

Resposta. Primeiro, diferente do centro, aqui não precisa induzir a demanda, ela já existe, e precisa ser protegida de alguma forma. Aqui você não precisa fazer ciclovias e ciclofaixas para que as pessoas mudem para este modal. Aqui, fazendo, você está protegendo. E devido ao transporte público na periferia ser pior do que nas regiões centrais, a chance de um maior número de pessoas migrarem para a bicicleta também é maior. Em muitos lugares ela virou sinônimo de salvar o mundo. Quem anda de bicicleta na periferia não está preocupado em salvar o mundo nem com a quantidade de carbono que deixa de emitir. Está preocupado em ir trabalhar, chegar e voltar, só quer ir e vir.

P. A bicicleta traz um ganho de cidadania?

R. Moradores aqui do bairro já vieram me perguntar se podem atravessar a ponte de bicicleta... Eu fico extremamente chateado de ouvir isso. É uma falta de informação da própria cidadania, que foi negada à pessoa. Ela se sente excluída pelo fato de que ninguém a informou de que ela pode usar a cidade. Algumas pessoas já me perguntaram: “Eu posso andar a pé naquela avenida?”. Já acho estranho me questionarem se podem andar de bicicleta, que é um veículo, em certas vias. Mas a pessoa me perguntar se pode ir a pé mostra a que ponto chegamos. A discussão do cicloativista não é a mesma de um operador de meio de transporte. Não queremos operar um meio de transporte, no caso a bicicleta. Queremos operar a cidade, é uma discussão mais ampla. Através da bicicleta a pessoa pode adquirir uma outra concepção de cidadania. Por isso a ciclovia da Paulista é simbólica. Porque amplia a cidadania. Hoje se você for até lá pode ser que veja uma mãe andando com uma criança em uma bicicletinha, mas antes da ciclovia você não iria vê-la andando no calçadão. Porque ela deveria pensar que não poderia levar a filha para pedalar lá, na concepção da maioria isso iria atrapalhar os outros. Se existe essa falta de direitos e cidadania para quem mora no centro, imagina aqui.

P. Existe um discurso segundo o qual as periferias têm muitos problemas que seriam prioritários se comparados à mobilidade...

R.  Na periferia sempre se fala: “existem tantos problemas, vou brigar por isso? Problema com saúde e vou pensar no buraco da rua? Problema de moradia e vou pensar no centro cultural?”. Essa lógica de raciocínio vem da política, e não da necessidade das pessoas. É uma lógica de moeda de troca, na qual a população da periferia acaba virando refém de uma demanda que nunca será atendida. Então não é ou escola ou saúde. As demandas são iguais. Alguém pode dizer: “Mas algumas questões lidam com a vida das pessoas”. A ciclovia também lida com a vida das pessoas. Tem gente que necessariamente usa a bicicleta por falta de opção, não porque não tem transporte público ali, mas porque ela precisa economizar.

P. Com preço do transporte coletivo em São Paulo...

R. O que a maioria não consegue entender é que a bicicleta traz para a periferia, em primeiro lugar, a economia. E com esta economia você consegue fazer um monte de outras coisas. A pessoa mais pobre pode não ter acesso à cultura, mas com a economia que ela faz com o transporte público ao virar ciclista pode ser direcionada para isso. Pensando num salário mínimo, ao deixar de pagar ônibus e metrô você economiza quase 20%. E muita gente na periferia paga para trabalhar. Na entrevista de emprego mente o endereço, porque dependendo do bairro o empregador não contrata. Então o vale transporte acaba cobrindo só uma parte do trajeto.

P. A bicicleta poderia ‘roubar’ passageiros dos ônibus, caso a rede de ciclovias fosse ampliada na periferia?

R. Nem todo mundo quer pegar um transporte coletivo para andar três quilômetros. Muitas pessoas estariam dispostas a ir a pé ou de bicicleta, se houvessem condições de segurança. Esta distância a pé feita por uma pessoa comum demora meia hora. De bicicleta são 10 minutos. Além da economia e do ganho de tempo, existe o benefício para a saúde. As pessoas perderam a noção da distância. O cara que mora na periferia e se desloca 20 quilômetro por dia sabe que isso equivale a uma hora e meia ou duas dentro do ônibus. Ele perdeu a referência: a distância é medida por tempo. Eu falo que vou pedalar 20 km e as pessoas falam: “nossa, quanto!”. Sendo que eu hoje faço essa distância em uma hora.

P. Na prática, além da economia para o bolso, qual o ganho de tempo de um ciclista com relação ao ônibus ou carro aqui na sua região?

R. A pessoa que sai do Jardim Damasceno e vai até o terminal Cachoeirinha de ônibus no horário de pico matinal gasta 45 minutos. São quilômetros em trajeto plano. Uma pessoa de bicicleta, inexperiente, sem treinamento ou condicionamento físico nenhum, fazendo esse trajeto de bicicleta, devagar, na manhã, leva 20 minutos no máximo. Do Damasceno até a Barra Funda de ônibus demora uma hora e quinze, uma hora e meia. Para a Lapa idem. De bicicleta estes trajetos demoram 45 minutos. Ou seja, caso a bicicleta fosse um modal incentivado e houvesse a estrutura adequada, além da economia no bolso a população veria, em alguns casos, uma redução de mais de 50% no tempo de seus deslocamentos diários.

P. A ciclovia é também um espaço de lazer?

R. Uma criancinha perguntou : “vou poder brincar com minha bicicleta na ciclovia?”. Quer dizer, já começa também a ideia de que a ciclovia é só para ir e vir, e você não poderia dar um passeio. Muita gente acha que bicicleta é pra isso. Se você está passeando, está errado. É um espaço público que muitas vezes é visto pela ótica da neurose do trabalho. É ruim que essa dinâmica pegue. Tem ciclovia pequena, que apenas dá a volta em praça. No Jaraguá e no Jardim Brasil têm isso. Mas você vai lá num sábado de manhã vê senhoras de 60 anos em cima de uma bicicleta, porque agora elas têm de novo a vontade de ir para a rua. É do lazer dela que estamos falando, seu exercício físico, que sejam 15, 20 minutos, pedalando em baixa intensidade. Isso resgata a cidadania. Ela não sairia na rua de bicicleta sem um espaço para ela.

P. Quais as principais obras que teriam que ser feitas aqui na região para atrair mais ciclistas?

R. A prioridade – isso inclusive foi prometido -, foram as pontes. Tanto elas quanto as grandes avenidas necessariamente precisam ter algum tratamento para dar acesso tanto ao ciclista quanto ao pedestre. Algumas pontes na região nordeste já tem uma infraestrutura do tipo. Uma avenida como a Inajar de Souza, por exemplo: só pedala nela quem tem uma tolerância alta ao risco. O ciclista comum não se aventura. Sem tratar devidamente as grandes avenidas e pontes, fica difícil o trabalhador se animar a pedalar lá.

P. É fácil tirar o motorista de dentro do carro e colocá-lo em uma bicicleta?

R. Nós, cicloativistas da periferia, constatamos que não vale a pena bater de frente com o motorista de carro. É mais fácil investir no pessoal que usa o transporte público, porque ele sofre mais. Está pagando para ir trabalhar, e está pegando o mesmo trânsito que o motorista que está no carro privado – só que o motorista fez esta escolha. Além disso, como vou falar para o cara que precisa sair daqui e ir para a avenida Berrini prestar um serviço, que a bicicleta é melhor para ele? Ou que o carro dele está sendo uma despesa e não um investimento? Quer dizer, o sonho da vida inteira dele foi comprar aquilo, e agora não vai usar porque o transito não deixa? Ele prefere ficar no trânsito. Então nosso foco é em quem não usa o transporte particular. Se conseguirmos tirar três ou quatro pessoas de cada viagem do ônibus, para ela é um benefício grande, e para a cidade também.

P. Muita gente diz que as ciclovias são subutilizadas...

R. Outro dia teve um protesto numa ciclovia aqui do bairro. Duas senhoras colocaram a cadeira no meio da ciclovia. Fazer isso 14h ou 10h da manhã, é óbvio que não vai ter ciclista nenhum passando. Porque o ciclista que usa a ciclovia na periferia usa exclusivamente para o trabalho ou para a escola. Ele não passa lá no horário entre-picos. Ele passa no pico. Ou muito cedo, ou muito tarde.

P. Na zona norte e em alguns bairros das periferias de São Paulo foram feitos pequenos trechos apenas...

R. Pequenos mesmo. Se você pega a zona sul, você tem circuitos internos que funcionam bem, apesar de não ligarem um bairro com outro. Na zona norte você tem algumas avenidas que têm trechos de ciclovias, mas que não ligam o bairro nem ao centro nem aos distritos vizinhos. E não há tratamento entre os bairros. Não é que queremos a periferia inteira com ciclovias, mas queremos o tratamento: que se reduza a velocidade dos carros nas vias principais, que se faça campanha de educação com motorista de ônibus e de táxi para que respeitem o ciclista nestas rotas... Isso já seria de muita importância. Mas nas grande avenida e pontes não existe outra solução: é preciso segregar de alguma forma o ciclista para que ele tenha segurança para circular. Queremos que seja interligado. Mas de qualquer forma, 900 metros que eu não tenha que disputar espaço com o carro, já dá um alívio. Os trechos do meu deslocamento que faço em ciclovia são outro clima, vou relaxado, não tenho que ficar olhando para traz o tempo todo. O desgaste é outro, eu até suo menos.

P. As ciclovias na periferia têm trechos separados, sem conexão entre eles. Atrapalha?

R. Isso é um empecilho para trazer novos ciclistas, necessariamente. Quem já usava bicicleta sem a interligação dos trechos continua usando: ela se sente aliviada por ter pelo menos alguns pedaços do caminho nos quais ela se sente mais protegida. Já a pessoa que não usava bicicleta não se sente à vontade para usá-la como meio de transporte só com pequenos trechos de ciclovia. Ela não sabe como lidar quando acaba o trecho, o que fazer. Ela não tem essa tolerância ao risco de dividir a pista com carros, e não tem o conhecimento do que ela pode ou não pode dentro do trânsito. Se anda na direita, na esquerda, se pode cruzar, quem tem preferência... Queremos que amplie a rede, mas caso não amplie, mesmo se a pessoa puder ir no final de semana e pedalar 600 metros na ciclovia, já há um ganho para cidadania.

P. Como você avalia a política de mobilidade do prefeito Fernando Haddad voltada para as bicicletas?

R. A política de bicicleta começou em julho de 2014. Temos um ano de implantação, e ela foi bastante rápida. Não é nem uma discussão de tirar espaço do veículo em movimento e dar para a bicicleta. A cidade estava privatizada pelos carros parados. Se há carro parado, existem outros modos de circulação que precisam ser privilegiados, seja o ônibus seja a bicicleta. Primeiro foi feita uma política para o transporte público, e depois para as bicicletas. Mas avalio que precisa ir além.

P. O Haddad foi eleito em 2012 com o voto da periferia, o chamado ‘cinturão vermelho’. No entanto os bairros distantes do centro não estão sendo privilegiados na implantação das ciclovias...

R. Acho que como sempre na política, é preciso gerar clamor público. É óbvio que cobramos e queremos ciclovias, mas a questão é: como fazer a sociedade aceitar isso? Se você diminui a velocidade na Inajar de Souza, que hoje é 60 quilômetros, para 40 quilômetros, não vai sair no jornal, não haverá clamor nenhum, não haverá discussão alguma. A periferia não repercute muito. E estrategicamente, o gargalo maior no começo da manhã é o centro, porque todo mundo se desloca para lá. Então tentar reorganizar a chegada ao trabalho, dando preferência para os ônibus e reduzindo o tempo do deslocamento alivia. E ao tirar o espaço privado de carro parado você faz com que o motorista repense a maneira de usar o automóvel em uma região que tem transporte coletivo e metrô ativos. É uma decisão acertada. O problema de mobilidade do centro é mais fácil de resolver, muitas pessoas já evitam ir de carro para lá.

P. Como você viu a ciclovia na Avenida Paulista?

R. É simbólico. Evidentemente ela tem uma importância como corredor, já que é uma via que fica congestionada facilmente, e a ciclovia pode ajudar a desafogar, ou pelo menos dá a opção para quem não quer usar o carro ou o ônibus. Mas é simbólico na medida em que prova que, se é possível fazer na Paulista, é possível fazer este tipo de obra em qualquer lugar da cidade. Não dá para falar que a Inajar de Souza [avenida importante da zona norte] não pode ter ciclovia. Na Radial Leste, Teotônio Vilela, Belmira Marim, idem. A Paulista precisa induzir a sociedade e o poder público a estender essa demanda para outros locais.

(El País, Foto Marcelo Iha/SPTuris)

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14 Setembro 2015

Mobilidade

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